Sodoma é uma cidade capitalista

Micropolítica dos guetos dos anos 70 na literatura pessoal do brasileiro Herbert Daniel

Autores

DOI:

https://doi.org/10.34913/journals/lingua-lugar.2023.e1483

Palavras-chave:

Literatura brasileira, Ditadura militar brasileira, Homossexualidade, Hegemonia, História da homossexualidade

Resumo

Durante o período da ditadura militar brasileira – após a militância clandestina em movimentos avessos ao regime – Herbert Daniel conheceu a repressão e o exílio, trabalhando numa sauna de Paris. Neste percurso, o escritor conseguiu evidenciar elementos de conflito, formação e transformação de uma sociedade urbana europeia elaborando reflexões que, posteriormente, o tornarão vanguarda de lutas que enfrentará na sociedade brasileira. O presente artigo pretende apontar tópicos da obra deste autor, quase desconhecido no panorama intelectual brasileiro, que engendrou uma análise irónica, mas eloquente, do micromundo gay parisiense ao lado das vicissitudes e das coibições do desejo homossexual, que flutuavam na guerrilha brasileira dos anos 70. Nos seus textos de “literatura pessoal”, Passagem para o próximo sonho (1982) e Meu corpo daria um romance (1984), descreve-se a reedificação de um topónimo figurado e inteligível, denominado “Sodoma”, um lugar do desejo, que, na perspetiva de um exilado revolucionário, apresenta conflitos e contradições, internas e externas. Ilustrar-se-ão fenómenos como racismo, machismo e discriminação de classe, observáveis desde os bastidores deste possível paraíso da volúpia, lugar de aparente libertação. Analogamente, a esquerda brasileira, da qual Daniel foi incansável militante, apresenta contradições, que o autor não renega, desenvolvendo uma visão intelectual e crítica genuína, atacando diretamente, após o seu regresso a um Brasil em processo de democratização, os saudosistas do regime. O objetivo do artigo será interpretar o seu pensamento, que se entrecruza com as teorias foucaultianas, atravessa, refugia-se e foge de vários guetos humanos, deixando-nos uma lúdica e lúcida reconstrução de um lugar do desejo que existe, existiu, ou poderia ter existido, mesmo que iniludivelmente condicionado por multifacetados poderes.

Biografia Autor

Matteo Gigante, CLEPUL - Universidade de Lisboa

Matteo Gigante é investigador integrado do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal. Desde agosto de 2023 é Bolseiro Pós-Doutoral do projeto de pesquisa “Artistas Letrados e Letrados Artistas. Relações entre Literatura e Artes Plásticas na Modernidade Contemporânea Brasileira” (AL-LA), do grupo 3 – Literatura e Cultura Brasileiras – do CLEPUL, coordenado pela Professora Alva Martínez Teixeiro e financiado por fundos nacionais, de Portugal, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00077/2020. A sua atividade foca-se principalmente nos Estudos Brasileiros, com ênfase nos Estudos Literários e Interartísticos, numa perspetiva ligada às Ciências Sociais e aos Estudos de Género. Na sua produção académica destaca a Tese de Doutoramento “Eros e Ares nos Trópicos: como uma certa literatura brasileira decidiu desarmar lógicas de arregimentação bélicas e dessacralizar mitos de masculinidade” (FLUL, 2022) – que recebeu “Menção Europeia” – e a Dissertação de Mestrado “Hilda Hilst e a ‘obscena lucidez’: entre receção e repressão” (FLUL, 2017), além de vários artigos e capítulos de livro. Realizou pesquisa doutoral financiada pela Reitoria da Universidade de Lisboa e pela FLUL (BD2017) e projetos de pesquisa financiados no Centro de Investigação “Cuerpo y Textualidad” (Erasmus+ – 2020) e na UNICAMP (FAEPEX – 2015).

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Publicado

2024-03-06

Como Citar

Gigante, M. (2024). Sodoma é uma cidade capitalista: Micropolítica dos guetos dos anos 70 na literatura pessoal do brasileiro Herbert Daniel. Língua-Lugar : Literatura, História, Estudos Culturais, 1(6), 60 — 75. https://doi.org/10.34913/journals/lingua-lugar.2023.e1483